A série, cujo terceiro episódio estréia nesta semana, quer mais que recordes de bilheteria, audiência de TV e venda de CDs. Ela oferece um pacote de valores morais para as novíssimas gerações.

Marianne Piemonte, de Los Angeles. Com Ana Aranha e Juliana Costa
Durante a pré-estréia de High School Musical 3 em Los Angeles, no El Capitan Theather, em Hollywood Boulevard, bem em frente ao Kodak Theather, onde acontece o Oscar, uma meninada de 5 a 14 anos preencheu os bancos entre os convidados da noite de 13 de outubro. Com balde de pipoca no colo e sem encostar os pés no chão, as americanas Karen Barsocchini, de 6 anos, e a irmã Ella, de 8 anos, não desgrudavam os olhos da tela. Só na hora do beijo do casal romântico do filme, Troy e Gabriella, Ella levou as duas mãos ao rosto, tapando os olhos. Mas deixou uma brechinha para ver e gritar “uhhhhhhh”. Exatamente como fez a maioria das crianças presentes. “Fiquei com vergonha, mas achei muito legal”, diz Ella. “Eles se beijaram porque são namorados há muito tempo, inclusive na vida real, e se amam muito”.
High School Musical 3, com estréia mundial marcada para o dia 24 de outubro, é mais que um filme. Trata-se do terceiro episódio de uma série de musicais que virou um dos maiores sucessos jovens de todos os tempos. Com todos os produtos associados à marca, do CD com a trilha sonora à vela de aniversário de criança. E também é mais do que todo o dinheiro que isso rende. Ele é a expressão de uma onda de valores morais transmitida com uma intensidade inédita para a nova geração de pré-adolescentes dos países industrializados – inclusive o Brasil.
Os dois filmes anteriores, lançados em 2006 e 2007, foram transmitidos pela TV paga no mundo. No ano passado, nos Estados Unidos, a estréia do segundo filme da série foi vista por 17,2 milhões de pessoas. Roubou o recorde do programa de futebol americano de segunda-feira do canal ESPN, com seus 16 milhões de espectadores na TV a cabo. A trilha sonora do terceiro filme é outro recorde: 14 milhões de cópias, a trilha de filme mais vendida de todos os tempos. Este terceiro filme é uma espécie de Grease – o musical de 1978 estrelado por Olivia Newton-John e John Travolta, que conta uma história de amor passada no ano de formatura do colégio –, 30 anos depois.
Marianne Piemonte, de Los Angeles. Com Ana Aranha e Juliana Costa
Nesta nova aventura escolar, em vez do tom de rebeldia (ainda que controlada) de Travolta, o HSM projeta heróis bem-comportados, que gostam das aulas, respeitam os pais, se solidarizam com os colegas e levam uma vida saudável. O HSM não prega seus valores morais elevados sozinho. Ele faz parte de um grupo maior de filmes, programas de TV, livros e músicas que transmitem exemplos edificantes aos pré-adolescentes. Boa parcela desses novos sucessos é da Disney, que, desde Branca de Neve e os Sete Anões, em 1937, se especializou em transmitir valores familiares para lares americanos – e do resto do planeta. Hoje, a Disney administra uma turma de bons moços e boas moças, da cantora Miley Cyrus (que encarna Hannah Montana) à banda Jonas Brothers (sucesso de Camp Rock). Mas o estúdio não está sozinho. No mundo globalizado, as crianças acompanham diariamente as lições de vida saudável da série islandesa Lazy Town e se admiram com a harmonia familiar dos irmãos Charlie e Lola, um desenho inglês.
A estréia do segundo filme da série foi vista por
17,2 milhões de americanos na TV a cabo, um recorde
Produções infantis com valores morais não são novidade. Mas nunca uma geração teve um acesso tão intenso a esses ídolos e modelos de comportamento. Os pré-adolescentes de hoje, principalmente no Brasil, vivem uma nova fase graças a uma combinação de fatores. O primeiro é a popularização da TV por assinatura. As crianças de classes média e alta desta geração têm canais infantis, como o Discovery Kids, Animal Planet e o próprio canal Disney, disponíveis 24 horas por dia. “O enfoque de toda a emissora mudou em 2002, quando deixamos de produzir conteúdo para todas as idades e focamos nas crianças em idade pré-escolar”, diz Fernando Medin, gerente-geral da Discovery Networks Brasil. “A partir daí, o conteúdo teve de se adequar às questões típicas dessa fase. Precisamos criar um ambiente em que os pais sintam que seu filho está a salvo e, ao mesmo tempo, se educando e sendo estimulado”.
O segundo fator é a disseminação dos DVDs, com uma oferta de títulos infantis que as próprias crianças podem colocar no aparelho e ver, rever e trever... O terceiro é a nova onda de livros infantis, como as séries Judy Moody e Go Girl. Os livros se tornaram tão especializados que oferecem soluções para os conflitos mais comuns de qualquer idade.
Para entender a cabeça dessa turma, é só conversar com Camilla de Souza e Silva Delouya, uma paulistana de 11 anos. Ela diz que vai ser vegetariana quando crescer. E não bióloga, como queria, pois ficou sabendo da dissecação dos bichos. Também não quer ser psicanalista, como a mãe e o pai, porque “o Freud fuma”. Achou engraçado? Esse discurso é de uma autêntica representante do que o historiador Neil Howe, da Universidade Yale, especializado no estudo de gerações, chamou de millennials, no livro Millennials Rising – The Great New Generation. Os “milênicos” são meninos e meninas que nasceram de 1981 até os dias de hoje. Crianças que tiveram suas fotos da maternidade mostradas para a família pela internet, que aprenderam a falar Google antes de papai ou mamãe e hoje dão aulas de tecnologia 3G para os pais. Crianças que têm na escola lições de reciclagem e acham feio avós que fumam.
A turma que nasceu do fim da década de 90 para cá, os pré-adolescentes de hoje, tem outra peculiaridade. “Eles são bem mais convencionais em suas escolhas, estilo de vida e valores que qualquer outra geração quando na mesma idade”, diz Howe. Em pesquisas e entrevistas, afirma, fica claro que essa valorização à tradição cultural deverá distanciá-los de drogas, bebidas e até sexo antes do casamento. Pode ser um pouco precipitado falar em drogas e de sexo para crianças de 9 a 12 anos, mas no mínimo é interessante observar o puritanismo de High School Musical. Para começar, o beijo tão esperado dos protagonistas, que trocam olhares apaixonados nos dois primeiros filmes, só acontece no terceiro. Mesmo assim, bem rapidinho. O sinal toca e eles têm de sair correndo para a aula. “No segundo filme, até tem um beijinho, mas é bem murchinho”, diz a paulistana Claudia Ferreira Leite, de 39 anos. Ela é mãe de Giuliana, de 9, que tem a música “Fabulous”, o tema de Ashley Tisdale, a vilã Sharpay Evans, como toque de celular. “Em um pedaço da tarde, sempre fazemos pipoca e fico me divertindo assistindo a Giu e a irmã (Mariana, de 4 anos) dançar e cantar com o DVD do filme”, diz. Claudia gosta de ver as filhas curtindo o filme porque, além do entretenimento, High School resgata valores como amizade, respeito aos mais velhos e aos professores.
O QUE ELES APRENDERAM
O elenco principal do filme vestido para a formatura. A série, ambientada numa escola, ensina o respeito aos pais e aos professoresComo em Grease, os personagens se conhecem nas férias e se encontram por acaso na escola, em High School Musical 1. O astro de HSM, Zac Efron, assim como Travolta, é o garoto mais popular do colégio. Mas não fuma, não bebe nem fala palavrão como fazia o moço do tempo da brilhantina. Ele é líder nos esportes, bom aluno, brincalhão e ainda está sempre pronto para ajudar os amigos. Também nunca aparece com um copo na mão, nem de Diet Coke. “É o genro que toda sogra quer”, diz a mãe de Giuliana.
O pai de Troy, o personagem de Efron, é também o treinador de basquete do time Wild Cats, do qual Troy é o capitão. No primeiro filme, os dois discutem porque o menino resolve se inscrever para o musical do colégio. O pai não quer que ele perca o foco do basquete, porque sendo um bom atleta ele conseguiria bolsa numa faculdade. Esse é o único momento de conflito dos três filmes, logo solucionado quando o pai ouve os primeiros acordes da voz do menino no teatro da escola. A partir daí, eles passam a ter diálogos que inspiraram Camilla, aquela que quer ser vegetariana, a conversar com a mãe com mais vagar. “Ela me conta bastante como era no tempo dela, quando também ia para acampamentos de férias, como eu vou. E como foi a primeira vez que ela foi pedida em namoro, porque já me pediram em namoro, mas eu não aceitei”, diz Camilla.
Essa relação próxima com os pais é também uma forte característica desta geração. “High School Musical reflete o conservadorismo cultural e os valores dessa turma, que é menos provocativa culturalmente, justamente porque não precisa romper barreiras”, diz Howe. Em seu livro, ele afirma que oito em cada dez pré-adolescentes americanos dizem não ter problemas com nenhum membro da família e a maioria deles concorda com os valores e opiniões dos pais. “Muitos dos milênicos são filhos da geração que passou pela revolução sexual, lutou contra ditaduras e já são netos do movimento hippie. Estão menos preocupados com a questão da autenticidade, mais atentos em misturar e se integrar ao que está por aí. Eles se sentem felizes em trocar conselhos com seus pais sobre roupas, entretenimento, carreira e ao mesmo tempo dividir as músicas de seus iPods, enquanto assistem juntos a remakes dos filmes preferidos de seus pais.”
O diretor e coreógrafo responsável pelo sucesso de High School Musical, Kenny Ortega, tem uma explicação para a aparente harmonia de interesses e valores entre pais e filhos. “Quantos pré-adolescentes bem-criados existem no mundo? É apenas uma minoria deles que se envolve com drogas e uma baixa porcentagem engravida na adolescência. A maioria é bem-comportada e se identifica com High School“. Ortega afirma que boas vibrações e gente feliz sempre movimentaram multidões. Cita exemplos como Cantando na Chuva (1952) ou Dirty Dancing (1987), musicais água-com-açúcar que marcaram gerações. Ortega não é um sociólogo nem psicólogo. Mas já se provou capaz de captar o espírito do tempo, ao coreografar Madonna em Material Girl e colocar Olivia Newton-John de patins em Xanadu, ambos na década 80.
Adultos que querem ficar jovens para sempre e jovens que não se incomodam com a interferência (ou superinteração) dos pais em sua vida podem ser as tendências responsáveis por essa diminuição do abismo entre as gerações. Howe afirma que esse relacionamento próximo, quase sem rupturas, permite que os jovens planejem a carreira com mais vagar, porque eles não têm necessidade imediata de sair de casa. Mas cria outros problemas. “Muitos milênicos na casa dos 20 anos ainda são absolutamente dependentes dos pais para tomar decisões. E têm dificuldade em solucionar problemas cotidianos, desde onde levar o videogame para consertar até decidir se liga para uma amiga ou manda um e-mail depois de furar a um encontro. Presenciei conversas assim, sem nenhum constrangimento deles”. É, possivelmente, o preço a pagar pela falta de rebeldia. Em várias espécies de animais, a adolescência é o momento de afirmação da própria identidade – e independência – principalmente pela rejeição do carinho dos pais. Ela tem uma faceta preocupante, pela tentação dos comportamentos de risco, mas é saudável: responde pela criatividade e pelo amadurecimento das pessoas.
Ainda é cedo para dizer se os espectadores de HSM e seus congêneres serão adolescentes menos rebeldes. O quadro da juventude atual não permite inferir isso. No Brasil, a proporção de mulheres que iniciam a vida sexual aos 15 anos cresceu de 11% para 32% nos últimos dez anos, segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança. A taxa de adolescentes de 15 a 19 anos que se declaram virgens caiu de 67% para 44,8%. E a proporção de grávidas de 15 anos quase dobrou, de 3% para 5,8%.
Terá a mídia poder suficiente para mudar essa realidade? É difícil, diz a psicóloga Lumena Teixeira, coordenadora de projetos do Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência. Segundo ela, a mídia não é a única influência no comportamento dos jovens. “As relações na família, na escola e com os amigos são os principais fatores para formar visão de mundo, valores, modo de avaliar a realidade”. Então, o fenômeno HSM não terá efeitos sociais? É provável que tenha. Nenhuma mensagem faria tanto sucesso se não encontrasse acolhida nos sentimentos dos espectadores. Matheus Guedes, de 9 anos, diz adorar o Troy porque ele é um “cara legal que dá conselhos para os amigos, dicas de matérias e ajuda todo mundo na escola”, assim como ele, que é fera em inglês. “Eu também adoro as roupas do Troy, tenho até uma bermuda parecida com a dele. E ele tem um monte de meninas atrás dele”. Talvez o HSM seja menos um modelo a ser “vendido” e mais a celebração dos valores que boa parte das crianças já tem.